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Indígenas tiveram papel crucial na disseminação da mandioca nas Américas, revela estudo

Os povos indígenas foram fundamentais para a geração de diversidade e dispersão da mandioca no continente americano, muito antes da chegada dos europeus. A conclusão é de um estudo publicado na revista Science nesta sexta-feira (7/03) que revela como se deu a evolução, a disseminação e o grau da diversidade genética da mandioca.

A pesquisa, conduzida por cientistas da Embrapa e de instituições dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Bolívia e Chile, analisou o genoma de 573 variedades da planta e identificou um forte parentesco genético entre elas. Segundo os pesquisadores, essa conexão foi impulsionada por práticas indígenas como a troca de variedades entre aldeias e a seleção de plantas espontâneas, garantindo a propagação de clones de alta qualidade ao longo dos séculos.

O pesquisador Fábio Freitas, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF), um dos autores do estudo, explica que foram analisados os códigos genéticos de amostras de mandioca e de seus parentes silvestres, distribuídos desde os Estados Unidos até o Chile. O objetivo foi traçar um panorama da evolução da diversidade da mandioca no continente.

Amostra arqueológica de mandioca com 2 mil anos

Para isso, os cientistas recorreram a coleções de bancos genéticos, a amostras de exsicatas (parte seca e prensada contendo folhas e flores que identificam uma planta – veja imagem acima) de herbários, variedades tradicionais cultivadas por povos indígenas e até a amostras arqueológicas. “Nós conseguimos sequenciar um leque muito amplo de espécies e variedades, tanto no espaço quanto no tempo. Temos amostras coletadas no ano passado, outras obtidas há mais de 100 anos e até uma amostra arqueológica com 2 mil anos”, destaca Freitas.

Segundo o pesquisador, a mandioca foi domesticada há mais de seis mil anos na borda sul da Amazônia, em uma área que hoje abrange os estados do Acre e de Rondônia. Dali, espalhou-se por todo o continente e além desse. Mas, diferente do que é normalmente encontrado em espécies de propagação sexual por sementes, como o milho, em que é possível identificar linhas evolutivas, para a mandioca isso não foi percebido. No milho as variações genéticas se aprofundam quanto mais distantes geograficamente as amostras estão do seu centro de origem, diferentemente do que foi registrado nesse estudo.

“Na mandioca, toda a diversidade existente entre as diferentes amostras estão mais ou menos espalhadas de forma uniforme, independentemente do quão distantes estão da borda sul da Amazônia, de onde saíram as primeiras populações domesticadas”, ressalta. “É como se todas as plantas fossem parentes muito próximas, muitas das quais como mãe e filha. Por exemplo, comparamos uma amostra coletada em Cuba, em 1904, e constatamos que, geneticamente, ela é filha de outra planta coletada na Amazônia, em 1961. Isso mostra como a dispersão dessa cultura, promovida pelos povos indígenas e, ao mesmo tempo, a manutenção de determinadas variedades geração após geração, foi extremamente eficiente ao longo dos séculos”, explica.

Membros da comunidade entoando cantos e oração em volta de uma Casa do Kukurro – monte de terra, ao centro da roda, que reúne exemplares de mandioca -, durante a preparação da roça. Foto: Fábio Freitas 

Diversidade genética e cultura indígena

Para entender como isso aconteceu, é preciso conhecer um pouco essa cultura. A mandioca é propagada predominantemente por clonagem, ou seja, novos cultivos são formados a partir de pedaços da planta original, chamados manivas, sem a necessidade de sementes. Isso quer dizer que plantas com o mesmo código genético podem ser cultivadas durante anos. Esse tipo de reprodução traz muitas vantagens, mas poderia levar à perda de diversidade genética pelo acúmulo de mutações deletérias (uma alteração no DNA que pode diminuir a capacidade reprodutiva e de adaptação de um organismo), no entanto, a pesquisa revelou que a mandioca manteve uma variabilidade surpreendente ao longo do tempo.

Isso ocorre porque a mandioca apresentou um nível de heterozigosidade acima do esperado (até mesmo maior do que a espécie silvestre). Isso quer dizer que uma mesma planta pode ter variação genética entre os dois alelos do mesmo gene contidos nos pares de cromossomos homólogos, mesmo sendo clonada. Ou seja, um clone, às vezes pode apresentar a característica herdada pela planta mãe e outras vezes pelo pai. Esse fator funciona como um “buffer” genético, uma espécie de seguro natural que protege a cultura de mutações prejudiciais e a torna mais resistente a mudanças ambientais, como seca, pragas ou solos pobres.

Além disso, práticas tradicionais das comunidades indígenas contribuíram para a preservação e ampliação da diversidade genética da mandioca. Um exemplo disso é a Casa de Kukurro, uma tradição do povo Waurá, habitantes do Território Indigena do Xingu, no estado de Mato Grosso. Parte do ritual consiste em reunir todas as variedades de mandioca em dois montes ou covas a cerca de 40 metros um do outro, acreditando-se que essa prática fortalece a energia das plantas. Na prática, a Casa de Kukurro permite o cruzamento de diferentes variedades, promovendo o surgimento de novas plantas, essas de forma espontânea, por semente, as quais são avaliadas, selecionadas e, se aprovadas, incorporadas na coleção de variedades de mandioca que já possuem.

Na aldeia Ulupuwene, no Alto Xingu, o agricultor Tapaiê Waurá (foto à esquerda) realiza esse ritual sempre que abre um novo campo de cultivo de mandioca. Em 2018, o evento foi registrado pela primeira vez em vídeo pelo pesquisador Fábio Freitas e pelo videomaker Celso Viviani, da produtora Rentalpix. Voltaram à aldeia em 2019 para acompanhar a colheita e a seleção de novas variedades. O material resultou no documentário Casa de Kukurro, disponível no YouTube.

Mais do que um ritual, a Casa de Kukurro representa uma estratégia eficiente de melhoramento genético da mandioca. “Essa tradição do povo Waurá funciona como um banco genético que permite não apenas a conservação das variedades que já possuem, mas também estimula o surgimento de novas variedades e a ampliação da diversidade da cultura no local. Os povos tradicionais multiplicam e selecionam novos materiais, mantendo aqueles que apresentam características agronômicas, culturais e nutricionais de interesse para a aldeia”, explica Freitas.

Foto: Celso Viviani

Esforço histórico de coleta garante resultados

Os resultados do estudo só foram possíveis graças a um esforço histórico da pesquisa agropecuária na coleta e análise de amostras de espécies silvestres do gênero Manihot e de variedades da espécie cultivada. O sequenciamento de 573 genomas foi viabilizado pela ampla diversidade das coleções de mandioca da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, da Embrapa Cerrados e da Embrapa Mandioca e Fruticultura, que reúnem plantas de diversas procedências geográficas e coletadas ao longo de um extenso período.

“Diversos pesquisadores e técnicos trabalharam e ainda pesquisam há décadas esse gênero, que hoje é preservado em bancos de conservação (foto abaixo) espalhados por diferentes Unidades da Embrapa, além de coleções de DNA e herbários”, conta Freitas. O herbário da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, por exemplo, abriga a maior coleção de amostras de parentes silvestres da mandioca.

Na visão do pesquisador, o aprofundamento do estudo sobre a história evolutiva e a diversidade da mandioca permitirá compreender melhor suas características e, assim, aprimorar estratégias de conservação e melhoramento da espécie.

Câmara fria da Embrapa Mandioca e Fruticultura, onde plantas de mandioca são conservadas e utilizadas em pesquisas de melhoramento genético Foto: Léa Cunha

Pesquisa abre novas perspectivas para o melhoramento genético da mandioca

A diversidade presente nos bancos de sementes do solo e a seleção de variedades espontâneas têm sido fundamentais para gerar novos genótipos (indivíduos que, após cruzamentos, podem se tornar variedades). “O estudo demonstrou que o cultivo tradicional da mandioca pode fornecer informações valiosas para o desenvolvimento de novos clones superiores e abre amplas possibilidades para a seleção de combinações parentais que maximizem a variância e a média de atributos agronômicos importantes”, explica Éder Jorge de Oliveira, pesquisador e melhorista da Embrapa Mandioca e Fruticultura (BA), centro que contribuiu com dados genéticos de sua coleção de trabalho e com análises prévias da diversidade da mandioca.

A ênfase na diversidade genética também pode ser essencial para enfrentar desafios emergentes, como a vassoura de bruxa, recentemente identificada no estado do Amapá. “A conservação de genótipos geneticamente diversificados pode facilitar a identificação de genes de resistência, permitindo o desenvolvimento de cultivares mais tolerantes a essa e outras ameaças”, explica Oliveira.

A Embrapa Cerrados, por sua vez, levou ao estudo materiais provenientes cultivados e preservados há gerações por comunidades da região do Cerrado, além de acessos de melhoramento genético com características distintas, como variações na cor da polpa e da raiz, resistência a pragas e doenças, diferenças nos teores de ácido cianídrico e variedades de mandioca açucarada, entre outras. “A ideia era que, com essa base, pudéssemos estudar a diversidade genética da mandioca de forma mais ampla”, destacou o pesquisador Eduardo Alano, que também assina o artigo. 

Alano faz parte da equipe que atua no programa de melhoramento genético da mandioca para as condições do Cerrado brasileiro e tem como base genética o banco de germoplasma da Unidade, que atualmente conta com 300 acessos representativos da diversidade genética da cultura no bioma. “Para o estudo, buscamos fazer uma amostragem da melhor forma possível para representar a diversidade genética do nosso banco de germoplasma”, explicou.

Para ele, os resultados obtidos são extremamente valiosos, pois permitem avanços mais rápidos no programa de melhoramento genético. “Esse conhecimento nos ajuda a entender o passado, compreender o presente e projetar o futuro da cultura da mandioca. Esse tipo de trabalho é essencial para isso”, ressaltou. 

Você comeria um clone?

A resposta é sim! Todos os dias, consumimos clones sem perceber. Mas esqueça os filmes de ficção científica ou a novela O Clone, da Rede Globo. Na ciência, um clone nada mais é do que uma cópia genética exata de um organismo, ou seja, um ser vivo com o mesmo DNA do original.

A clonagem é extremamente comum no reino vegetal. Muitas espécies, como batata, banana, abacaxi e mandioca, são cultivadas a partir de pedaços de suas próprias estruturas, como caules ou raízes. No caso da mandioca, planta-se um pedaço do caule, a maniva (foto à direita), de onde nascem novas plantas geneticamente idênticas à original.

Essa reprodução por clonagem tem vantagens para a agricultura, pois garante uma produção padronizada e previsível. No entanto, a falta de diversidade genética pode ser um risco: se todas as plantas forem idênticas, uma doença ou outra condição adversa pode devastar uma plantação inteira.

A mandioca, no entanto, desafia essa lógica. O estudo publicado na Science demonstrou que essa cultura manteve uma diversidade genética surpreendente graças ao seu alto grau de heterozigosidade. Isso significa que, mesmo sendo clonada, a mandioca possui diferentes alelos em seus genes em cada planta, tornando-a mais resistente a doenças, pragas e variações ambientais.

Saiba mais:Artigo: Historic manioc genomes illuminate maintenance of diversity under long-lived clonal cultivation

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